sábado, 27 de abril de 2013

27 de abril é o Dia do Engraxate. Em homenagem a esses profissionais, reprisamos crônica do colaborador do blog, Cesar Magalhães. O personagem principal dessa história continua em plena atividade na praça Tomaz Barbosa, centro comercial de Canindé, Ceará.

O MOCOZINHO



Augusto Cesar Magalhães Pinto*

Há quase meio século estabeleceu-se como engraxate, na calçada da Casa Campos, o canindeense Raimundo Ferreira Lins, conhecido como «Mocozinho». Posteriormente, em 1997, foi transferido para poucos metros dali, para a praça Tomaz Barbosa, local onde ainda labuta diariamente. Trata-se de um tipo popular nascido nas imediações do antigo «Beco do Já Tem», nas proximidades do atual cruzamento das ruas João Pinto Damasceno com Romeu Martins, numa velha casa que pertencia ao Sr. Homero Martins.
Seu pai, conhecido como Mocó Chumbada, veio do Rio Grande do Norte, onde fora barbeiro e de quebra, trompetista da Banda Musical de Ceará - Mirim, sendo que em Canindé, ganhou fama como curador «raizeiro». Com o passar de poucos anos, acometido por paralisia e cegueira, ficou completamente inválido e como era uma época em que não havia a rede de proteção social de que hoje dispomos, sua convalescença decretou a total pobreza da família.
Já a mãe, conhecida como Maria Pretinha, era afamada por suas rezas fortes e cartomancia. Determinada, passou a ocupar-se na lavagem de roupas das famílias mais abastadas, indo diariamente para o açude Riacho Sujo, transportando na cabeça enorme trouxa de roupa, que contrastava com o seu porte físico diminuto. Os três filhos meninos passaram a trabalhar com o único objetivo de ajudar a mãe em prover o sustento da família, enquanto as filhas cuidavam da casa e do pai, havendo um pacto familiar explícito de nunca deixar o velho Mocó passar fome ou precisar mendigar.
Muito cedo, aos oito anos de idade, o Mocozinho começou a trabalhar numa atividade que consistia em esperar as caravanas de romeiros que vinham principalmente do Piauí, em comboios, testemunhando a chegada de homens e eventuais mulheres, a cavalo, depois de romper enormes distâncias, apresentando visível aparência de cansaço. Ele abordava aquele que percebia ser, digamos assim, o chefe daquele grupo e se prontificava a levá-los para a pensão do Sr. Manoelzinho Custódio, onde tinham boa alimentação e hospedagem por preço módico e se prontificava a banhar os animais e levá-los para uma capoeira com água e forragem, recebendo dos romeiros, ao entregá-los para retorno, um pagamento pelo serviço desempenhado, e eventual gratificação do dono da pensão.
Como ficou dito, sua mãe lavava roupa para terceiros, sendo seu principal cliente o seu compadre João Neco, proprietário da «Pensão Neco» e padrinho de batismo do Mocozinho, a quem este pedia a benção toda vez que o encontrava, beijando-lhe a mão de forma reverente. No período de baixa estação acompanhava a mãe até a pensão ajudando a trazer a roupa suja, e posteriormente para devolvê-la lavada e engomada. Ele era ainda tão pequeno que sua maior dificuldade consistia em conduzir os paletós engomados, de braços erguidos, para que estes não arrastassem no chão. De certa feita o padrinho, percebendo o quanto ele era esforçado, pediu à comadre para que deixasse seu afilhado trabalhar na pensão, comprometendo-se a dar-lhe boa alimentação e um pagamento semanal. E assim foi o Mocozinho trabalhar como empregado no empreendimento do seu saudoso padrinho, de quem tem gratas lembranças, tanto pelo seu temperamento bonachão – apesar de às vezes se zangar facilmente – e por ter sido, em época de vacas magras, um homem de barriga cheia.        
Naqueles atrasados anos da década de 1950, iniciou-se naquela atividade, que consistia em atender os romeiros, carregar malas até os cômodos, fazer compras, dar recados e servir as mesas. Inúmeras são as histórias que guarda daqueles tempos, algumas das quais impublicáveis, próprias de menino pobre que teve o mundo como professor.
Apesar de gostar muito do padrinho, de certa forma se sentia preso, o que não combinava com sua natureza de menino criado livre, batalhando nas ruas. Todavia, ligado à família Neco, ficou acertado que trabalharia como ajudante do jipe do Edmundo Neco. Naquela época havia pouquíssimos carros em Canindé e trabalhar como ajudante de motorista de praça era mais compatível com seu temperamento, haja vista o caráter itinerante da atividade, que acarretava deslocamento diário para diversos pontos do município e, eventualmente, para a capital.
Tempos depois veio a trabalhar como caixeiro no Mercado Público de Canindé, na mercearia do Sr. Joacir Neco, ali permanecendo por oito anos, vindo nas horas de folga e nos finais de semana a trabalhar como engraxate, profissão que aprendeu ainda criança, ajudando o irmão de nome Delcio.
Já ouvi de viva voz inúmeras histórias, contadas por ele próprio, que carregam o traço diferencial da irreverência. Outro dia ele me dizia que a coisa mais feia que achava, desde criança, era um negro careca, de óculos e dentadura e que foi triplamente castigado.  Ditos «causos» quase sempre têm ele próprio como protagonista ou algum parente seu. Desprovido de qualquer preconceito, faz gozação de situações que já viveu e ao contrário da maioria das pessoas, que, hipocritamente, escondem a sete chaves suas situações embaraçosas ou eventual vergonha comportamental, ele conta tudo com desembaraço e entusiasmo e ao final solta, invariavelmente, sua larga risada decorada pela dentadura que, segundo afirma, só serve para rir, comer ovo cozido e banana.
Na juventude era do tipo meio brigão, sendo afamados os seus embates com o Hélio Engraxate, dos quais resultaram algumas cutucadas a faca. Afirma, todavia, que nunca foi de provocar ninguém, mas que naquele tempo tinha um azar infeliz pra ser insultado.
Os que o conhecem de longos carnavais sabem que não se trata de nenhum santo, entretanto, atestam o quanto é bom pai e o quanto foi bom filho. De certa vez houve uma discussão de sua genitora com um compadre dela, coincidentemente padrinho de fogueira do Mocozinho. A questão foi tão acirrada que culminou com ela se sentindo mal a ponto de desmaiar. Avisado às pressas, o Mocozinho abandonou a caixa de engraxate, partiu em socorro da mãe no jipe de praça dirigido pelo Sebastião Passarinho, levando-a ao Hospital São Francisco, que há pouco havia sido inaugurado pelo vigário frei Lucas, no prédio onde hoje funciona a catequese. Medicada e restabelecida ela teve que ficar internada e o Mocozinho voltou ao trabalho sendo que à boca da noite foi visitá-la.
– Mamãe, como a senhora está?
– Estou bem meu filho, só estou achando ruim passar o dia sem ninguém pra conversar, fico imaginando como vai ser de noite...
O Mocozinho ficou pensativo e em seguida soltou:
– Fique tranquila que eu vou mandar uma pessoa pra servir de companhia para a senhora.
Em seguida partiu para o outro lado do rio rumo à residência do seu padrinho e ao chegar nas imediações encontrou-o  na calçada, sentado num tamborete e tomando café, bem tranquilo. Ao aproximar-se, cumprimentou-o:
– A bença meu padrinho?
– Deus te abençoe meu filho, como vai a comadre Maria?
– Tá bem, padrinho, ainda tá internada, mas tá bem! – fez uma leve pausa e continuou – o que ela não tá achando bom, padrinho, é ficar lá sozinha, sem ninguém pra conversar, aí eu vim chamar o padrinho pra fazer companhia a ela lá no hospital.
– É, meu afilhado, se eu tivesse tempo eu poderia até ir, mas eu sou muito ocupado e não posso.
– O padrinho vai! – afirmou o Mocozinho decidido.
– Vou não, nem tem quem me obrigue, nem a polícia! – respondeu o padrinho visivelmente zangado e desafiador.
O Mocozinho puxou a faca de sapateiro, deu-lhe três cutucadas e o padrinho foi fazer companhia à comadre no hospital.
No final das contas a mãe teve alta no dia seguinte e o padrinho ficou internado por duas semanas.


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*Autor dos livros: Viagem pela história de Canindé e Histórias de nossa terra e de nossa gente.

2 comentários:

  1. Muito pitoresca a crônica, feita com a habilidade literária que o César desenvolveu ao longo de muitos anos, mostrando o quanto aperfeiçoou a sua escrita, com um domínio raro da palavra. A história flui de modo fácil, agradável, prazerosa. Quantos dados César teve de colher do Mocozinho, tão bem guardados na memória dos dois. É a história de uma vida, resumida exemplarmente em poucas linhas mas capaz de nos proporcionar uma visão quase que completa.
    Não entendi uma coisa: cutucar é só encostar ou é um golpe mesmo? Digo isso porque o padrinho poderia ter sido hospitalizado apenas pelo medo ou por alguma ameaça de enfarte.

    Flávio Henrique

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  2. Caro Flávio Henrique,

    Ao agradecer suas palavras, explico melhor o significado de "cutucar": os engraxates usam facas peixeiras que eles quebram a lâmina original e deixam-na muito curtas e afiadíssimas para cortar couro e quaisquer materiais inerentes a profissão. Quando ele fez uso da faca no "padrinho" ela não penetrou muito porque esbarrava no cabo de madeira. Desta forma, ela penetrou poucos centimetros fazendo um certo estrago mas não atingiu e modo devastador nenhum órgão vital.

    Cesar Magalhães

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