quinta-feira, 19 de julho de 2012


PARA ESTUDAR, REMAR É PRECISO…


Pedro Paulo Paulino

É fato inegável hoje em dia, que as chances de estudar são muito maiores do que no passado nem tão distante. A qualidade do ensino público, porém, é fato questionável. Mas não é disto que vamos tratar aqui. O que se observa em certas regiões, principalmente no meio rural, são as dificuldades – algumas vezes impostas pela própria natureza – que fazem da busca do aprendizado um verdadeiro desafio.
Visitando o interior do município de Boa Viagem, no Sertão Central cearense, testemunhei uma cena que me fez meditar sobre a rotina de cerca de 20 crianças que diariamente enfrentam um obstáculo para chegar à escola: o rio. Elas vêm da localiade de Oiticica, modesto ajuntamento de casas onde a vida segue ainda o compasso modorrento de uma valsa lenta. O nome da povoação, em si, arranca de nossa memória alguma coisa ligada à bonança, tranquilidade e paz. O topônimo, tão comum a muita aldeia sertaneja, vem do vegetal que já foi fonte de prosperidade para a economia de estados do Norte e Nordeste. Mesmo escassa em nossos dias, a oiticica é um símbolo da nossa paisagem rural.
Pois bem. Da localidade de Oiticia os estudantes partem para a escolinha, situada já na fronteira urbana. Mas, no meio do caminho, há o rio. Este, por si mesmo, já enfrenta seu obstáculo: a seca. Contudo, como também bom sertanejo o Jacaúna reage forte e resoluto, sem nunca deixar faltar àgua em seu caminho. Por isso ao seu redor tudo é verde e cheio de vida. É verdade que nos anos de boas chuvas esse pequenino Nilo se enlarguece e abraça as terras de lado a lado. Agora, está magro, mas sua correnteza ainda impõe certa moral. E é por isso que para cruzá-lo os estudantes servem-se de uma canoa. Para tanto, tiveram apoio da prefeitura que doou a embarcação e os coletes de segurança. Há também o remador que comanda esse trânsito tranquilo e pachorrento de todo santo dia.
Vendo essa cena, imaginei que impressões deverão ficar guardadas na mente desses meninos e meninas que ainda encontram no caminho da escola uma motivação tão pueril e natural, aonde os ruídos da era digital de alguma forma não chegaram. O obstáculo causado pelo rio transforma-se de verdade em alegria e diversão para essa garotada que embarca em sua canoa como navegantes em busca de novas terras. A cena fez-me lembrar passagens do livro de memórias do escritor maranhense Humberto de Campos, em que ele narra a escolinha da infância em sua remota Miritiba. “A escola era risonha e franca”, revela o antigo cronista. E quem de nós, da geração mais anterior, ao ver aquela meninada a caminho da escola também não sente uma inquietação na alma? Complementando o quadro lúdico, os estudantes de Oiticica são recebidos na margem do rio pela tia Liduína, com seu afeto maternal. Antes, porém, da chegada à escola, há uma parada providencial no alpendre de antigo casarão que, de uma chapada, espia ciumento para o rio, e deste recebe sua brisa consoladora. Ali é oferecida água fresca e sombra.
A escola regida por tia Liduína, conquanto adote a linha moderna de ensino, ainda tem um quê do antigo padrão. Os estudantes postam-se em círculo em suas cadeiras, enquanto ela, mais que presidir uma aula pedagógica, conversa e anima, metendo na cabeça daquelas duas dúzias de discípulos o que há nos livros e no coração dela.
E quando acaba a aula, é ela mais uma vez quem acompanha os estudantes até à margem do Jacaúna, onde a canoa os espera para a travessia de volta. A cena repete-se no dia seguinte. É surpreendente reencontrar por esses ermos – onde quase de tudo moderno já existe, do bom ao ruim – situações humanas tão singelas quanto essa. Se, em tantos lugares o caminho da escola frequentemente tem como obstáculo o mal em suas múltiplas formas, para os estudantes da povoação de Oiticica o obstáculo é o rio gostoso e manso. E, transpondo-o, têm eles a certeza do ensinamento e do carinho da mestra que, apesar de sua bonomia, conserva sua escola risonha e franca. Na memória deles fermentará, certamente, uma voluptuosa nostalgia. 

Estudantes: canoa e coletes doados pela prefeitura
Casarão: parada providencial
Tia Liduína: escola "risonha e franca"


FOTOS: Fº ESTRELA.

3 comentários:

  1. Rapaz, seu artigo me recordou aquele outro do antigo Gazeta do Sertão, refente ao Choró. Se há uma cena que me revolta é o descaso com essas criaturinhas cheias de esperança e ainda nem sabendo que já estão a moldar seus destinos, seja nas estradas poeirentas nos inseguros paus-de-arara ou em canoas que se fazem de transporte escolar. Somos conscientes que há verba federal suficiente a assegurar coisa bem melhor, não insalubre. Imagine a linha de partida para a sucesso pessoal de quem inicia assim seus estudos e de quem vai no ar refrigerado de um carro de luxo para uma escola com todos os aparatos de conforto. Por isto instrumentos como as cotas raciais, embora de forma forma alguma seu artigo aluda ao temo, que abraço como referência pessoal, ainda são necessários, e deveriam ser respeitados, não tratados com a platitude costumeira.

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  2. Caro leitor e colaborador do blog, SRS, nada mais me recordou in loco, do que aquela matéria que V. Sria. escreveu nos idos de novena na extinta Gazeta do Sertão. Se bem me lembro, era este o título da matéria: "Sonho e esperança navegam pelo Choró", ou qualquer coisa parecida. Seu modo de pensar, sobre o que ora escrevi, traduz perfeitamente as entrelinhas. Nada mais, nada menos.

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  3. Magnífico o artigo, uma delícia para a mente e a alma. A sensibilidade com que foi mostrada a simplicidade das crianças, a sua vontade de aprender, de se aperfeiçoar, tudo isso me comoveu, sobretudo porque escrito com uma eloquência natural de quem faz arte com inteligência.

    Flávio Henrique

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