segunda-feira, 25 de junho de 2012



LITERATURA QUE DESANUVIA


Silvio R. Santos

Será possível, hoje em dia, considerar o ócio uma forma de lazer? Em vista que tantos gastam suas poucas horas de folga em saracoteios frenéticos ou outros rituais obrigatoriamente coletivos, vem a indagação de quem ainda gastaria sua folga deitado em uma rede ou espreguiçadeira, curtindo o far niente na companhia de algum livro. Se for o caso, quem vez por outra, talvez entre a leitura de um Carl Sagan ou uma página de Machado de Assis, seria bom recorrer a alguma coisa que desanuvie a mente da seriedade viscosa das angústias.  Verve Cearense, explica o título.  A gaiatice do nosso povo, bem decantada por poetas jocosos como Arievaldo Viana, Pedro Paulo Paulino, J. Batista, José Pacheco e estudada por eruditos como Câmara Cascudo, mestres Leonardo Mota, Gustavo Barroso. Neste caso por Renato Sóldon, dito sobrinho de Quintino Cunha, que se não foi, deveria ter sido. O exemplar que detenho está autografado por Sóldon, em 17 de janeiro de 1974, mas o livro foi lançado em 69, em edição do autor. Infelizmente sem qualquer notícia de sua biografia. Originário do comércio eletrônico de raridades, evoca a anedota de Bernard Shaw, quando, ao encontrar em um sebo um livro de sua autoria dedicado: “Com afeto a……… Bernard Shaw”.  Comprou o exemplar e devolveu com nova dedicatória: “Com renovado afeto a……" Por mais que busquemos referências universais na literatura, no cinema, na música, temos que voltar frequentemente à nossa vertente essencial de cearense. Não há como não termos um inevitável bairrismo pelo Ceará e o encantamento de sua cultura, no que esse volume é ideal, por trazer perfis de Capistrano de Abreu, Quintino Cunha e outros. A fim de não aporrinhar o leitor com mais delongas de pseudoerudição, cite-se apenas a página 166 para dar uma ideia geral da verve cearense lá contida:

“Dizia-se que a jovem, poetisa conhecida, publicara, na imprensa de Fortaleza, uma poesia dedicado ao noivo, terminando o poema com este verso: 

A Natureza foi comigo avara!

O poeta, porém, retribuindo a amabilidade da sua amada, enviou-lhe um soneto,que foi igualmente publicado e que concluía assim'E eu passo a vida inteira dando ais!'

Vejamos, agora o que disse, a respeito, Eurico Olímpio, impiedosamente:

Amar ela tem sido a minha vida...
E eu sigo a vaga linha de outro norte,
N’alma minha, coitada, entristecida,
A dor a garra pousa, adunca e forte.

Sem consolo nem fé deu-me a querida,
Desprezo que só quer torcer-me a sorte,
Essa fada cruel e tão fingida
Cá só veio arrastar-me para a morte.

Eis aqui, do passado a triste tela:
Se tive pretensões acerca dela,
Já não posso sonhar com nada mais!

Desprezos me já dão, oh dor amara!
Se a Natureza foi contiga avara,
Eu vivo,neste mundo, dando ais!"

5 comentários:

  1. O livro de RENATO SÓLDON tem o mérito de fazer humor com estilo literario, coisa rara nesse tipo de livro. As anedotas são rapidas em bem contadas e a parte poetica é impagavel.

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  2. Um vislumbre ! Se a natureza vai com alguém à vara, não há quem não diga ais. E se for de bambú...ai ai são as palavras que tú dizes, na hora em que estais sendo empalada...

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  3. De sarcasmo incontido é também essa passagem do livro de Sóldon:

    "O CLERO cearense, em 1923, quando Abílio era Chefe de Polícia, encetou, infrutiferamente, a mais forte campanha contra as festas dançantes. E o poeta, por debaixo da cortina, sob pseudônimo, mandou estes versos a um jornal oposicionista, dificultando, dessa forma, a identificação do autor:

    Chega ao céu uma defunta,
    Loura, franzina, catita...
    São Pedro, grave, profundo,
    Vendo a defunta bonita,
    Coça a barba e se concentra,
    Se concentra e lhe pergunta:
    - Dançaste tango, no mundo?
    - Dancei, São Pedro...
    - Pois entra..."

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  4. As anedotas de Quintino Cunha coligidas nesse livro estão à altura das melhores de Emílio de Menezes. Quintino, sem dúvida, foi um dos melhores quengos que a luz do Ceará já iluminou... inteligência finíssima.

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  5. Perfeito, B. Tanko, quem vive no mundo dando ais, por suposição (não supositório), deve germer mais se a vara da natureza for de bambu...

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