quinta-feira, 29 de junho de 2017


AOS PÉS DE GLAUCO MATTOSO


Pedro Paulo Paulino 
Recebo mais um livro do poeta Glauco Mattoso. Desta feita, o título é: “AOS PÉS DAS LETRAS – Antologia podólotra da literatura brasileira”. Organizada pelo próprio Glauco e por Antonio Vicente Seraphim Pietroforte, a publicação vai da prosa ao cordel, de Machado de Assis a escritores anônimos. Com mais esse livro, sobe para nove volumes minha coleção mattosiana - sem falar num CD – “Melopéia” – com sonetos musicados do grande poeta paulistano de Vila Mariana, e que hoje aniversaria.
Autor de milhares de sonetos, a versatilidade literária de Mattoso permite-lhe ainda destaque nacional como contista, ensaísta, lexicógrafo, tradutor, letrista, editor e colunista nas mídias impressa e virtual. Graduado em biblioteconomia e em Letras pela USP, estas qualificações são apenas aditivos ao currículo de Glauco, um sonetista fantástico, com autoridade máxima para assinar sua “Teoria do soneto” e um tratado de versificação intitulado “O sexo do verso: machismo e feminismo na regra da poesia”.
A temática vertiginosa dos sonetos de Glauco Mattoso faz uma espécie de varredura macro e micro do mundo. Da política à ciência, do bairrismo ao cosmopolitismo, em tudo o seu estro transita livremente: as mais complexas nuances da psicologia humana comparecem na sua poética monumental. Como poeta anárquico, mordaz e sarcástico, nem parece ter havido qualquer hiato de tempo entre Gregório de Matos e Glauco Mattoso, pois a crítica impiedosa é uma de suas ferramentas geniais. Já como poeta dito fescenino, poderíamos considerá-lo mais refinado que seu homônimo remoto, Pietro, o Aretino, uma vez que Glauco também é Pedro, sendo Ferreira da Silva. O pseudônimo é um desdobramento do nome da enfermidade que o deixou cego, na década de noventa.
Glauco Mattoso
 Como poeta licencioso, na grandeza de seus sonetos, burilados no melhor calibre da métrica e da rima, o que vulgarmente se chama de pornografia adquire um grau de nobreza. O que mais pesa na literatura mattosiana é a construção impecável de seus poemas, em especial os sonetos de uma estética e plasticidade palpáveis. A rigidez da forma clássica do soneto, nas mãos do poeta ganha uma felixibilidade admirável, fazendo-o encontrar rimas quase impossíveis e cavalgar de um verso para o outro com uma destreza de malabarista. O poeta e literato canindeense Silvio R. Santos chama a atenção para um detalhe na métrica de Mattoso: seus decassílabos, invariavelmente, além da acentuação clássica, têm pausa logo na segunda sílaba, dando ao verso uma cadência especial.
Na prosa, Glauco Mattoso salienta sua habilidade prodigiosa com a construção literária, oferecendo como exemplo seu livro “A planta da donzela”, parodiando famoso romance. Muita vez, rejeita as normas atuais da gramática e emprega a ortografia de 1940. A marca registrada do seu gênio reside exatamente nesse universo de habitantes que têm o raro brilho da ironia sem fronteira e da imaginação inesgotável. O trabalho perfeito do poeta é, certamente, uma joia da literatura brasileira contemporânea, pois é entregue despido de pieguismo – mesmo quando trata do romântico – e isento de hipocrisia – mesmo quando trata da virtude. Glauco Mattoso é tão original, que elegeu o pé como objeto de seus versos, sem todavia contrariar o coração:

“SONETO VICIOSO

Poema lembra amor, que lembra carta,
Que lembra longe, e longe lembra mar,
Que lembra sal, e sal lembra dosar,
Que lembra mão, e mão alguém que parta.

Partir lembra fatia e mesa farta;
Fartura lembra sobra, e sobra dar;
Dar lembra Deus, e Deus lembra adiar,
Que lembra carnaval, que lembra quarta.

A quarta lembra três, que lembra fé;
Fé lembra renascer, que lembra gema,
A gema lembra bolo, e este o café.

Café lembra Brasil, que lembra um lema:
Progresso lembra andar, que lembra pé,
E pé recorda alguém que faz poema.”

No aniversário do poeta, este soneto de sua autoria faz um resumo singular:

“SONETO REMONTANDO A 1951

Minha cronologia principia
no dia de São Pedro. De glaucoma
já nasço portador, mas, nesse dia,
só querem que se beba e que se coma...

Sou neto de italianos, e a mania
é dar diminutivos: no idioma
de Dante, sou Pierin. Me oferecia
um brinde o bisavô, que vinho toma...

Pierin, ou Piergiuseppe, dura pouco.
Já sou Pedro-José. O ouvido mouco
não é, mas um dos olhos já pifava...

Na foto, faço gestos algo obscenos,
unindo dois dedinhos: já pequenos,
mostravam a revolta: ‘Vão à fava!’”  


2 comentários:

  1. Um dia já supus entender de poesia, foi antes de conhecer a obra e travar contato com o gigantesco poeta G.M. A clareza com que comunica sua erudição deve ser única na história da literatura. Tradutor de Jorge Luis Borges (pelo qual já dividiu o prêmio Jabuti) pertence à escola da transcriação, ou seja, da tradução em que da língua de origem se chega à de destino, com uma qualidade estética de mesmo peso do original. Comentou com propriedade a monografia O Soneto do canindeense Cruz Filho. Anota com extrema generosidade seus próprios sonetos, permitindo a seus leitores ampla compreensão de sua senda poética. Converteu com sucesso contos de Machado de Assis e outros em sintéticos quatorze versos. Hoje é seu aniversário, que venham outros milhares de sonetos, poeta.

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  2. Como diria o saudoso Batistaca: boa, meu nego!

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