terça-feira, 13 de março de 2012


Estar quite com a balança já era uma preocupação no século XIX -- e perder peso à custa de uma dieta brusca também trazia prejuízos à saúde. Em uma carta de 1897, Eça de Queirós (1845-1900) usava de seu bom humor para alertar o historiador paulista Eduardo Prado (1860-1901) sobre os riscos de uma dieta radical, sugerindo alternativas prazerosas para o amigo se livrar das gordurinhas indesejadas.

CARTA A EDUARDO PRADO

Eça de Queirós

Plombières, 20 de agosto de 1897.

Meu querido Prado.

Ainda bem que o seu bilhete, para me livrar d’inquientações, me trouxe, ao mesmo tempo, a notícia da doença -- e da convalescença. Meu amigo! a criatura nunca deve alterar, por modos violentos e bruscos, as proporções que lhe deu o Criador. Quem por motivos fisiológicos, estéticos ou sociais deseje encolher -- que o faça por um regímen discreto, vagaroso, e como que respeitoso do seu próprio ser... Mas saltar para um expresso, correr a uma source (e na Boêmia!), para, à força d’águas ingurgitadas, se desembaraçar à pressa, em 15 dias, duma imensa parte da sua substância -- é quase um ato contra a moral. A Natureza, assim violentada, batida por uma vil fonte da Boêmia, não perdoa, e sorrateiramente atira logo a facada de vingança, no baço, na garganta, ou na virilha. Sempre o precavi contra essa Mariembad... Antes v. tivesse vindo para Plombières. Estas águas, também curam a obesidade; -- o Hotel, com o seu regímen, convida, força quase à abstinência; a monotonia ambiente seca a fibra; a necessidade de, entre montanhas, subir sempre, trepar sempre, desgasta e derrete as banhas mais espessas: -- e estou certo que, a esta hora, v. aqui, já rivalizaria em elegância franzina com o primeiro das alturas. Eu, por ex., verifiquei hoje ter perdido um quilo. Em quê, Santo Deus? Não tenho feito, que eu saiba, dispêndio inútil nenhum da minha substância. Nem arte, nem namoro, nem ambição, nem redemoinho social, nenhuma destas forças absorventes se apossou de mim para me chupar... E todavia, lá vai o meu quilo! Atribuo talvez esta perda ao desespero que me tem dado a banalidade do único livro que tenho lido, por não possuir outro, uma certa Roma e o Império de um certo Tomás. Felizmente para me consoloar deste atroz Tomás, tem estado aqui o Domício*. Como veio a Plombières também se plombieriza. Mas esse, não sei como, ganhou um quilo. É decerto o meu. E aqui está a lealdade dum amigo! Quando hoje lhe lancei em rosto esta subtração ele ficou embaraçado. Temos passeado e ruralizado. Plombières é encantador, -- mas a natureza tão alinhada, penteada, aveludada, escovada, frottée, pommadée, com tão lindos e pelucheux tapetes de relva, e aleiazinhas tão de Ópera-Cômica, e sapins tão graciosamente recortados em sêda -- que eu estou anelando pela rude e desgrenhada Natureza dos Champs Elysées. Partimos pois para Paris -- onde v. devia aparecer, mesmo por higiene, porque só lá verdadeiramente se emagrece, e com mais prazer e com mais economia. As «águas» foram só criadas para curar os médicos da falta de dinheiro. Aqui está um que me levou hoje 60 frs. por me ter mandado três ou quatro vezes deitar a língua de fora! -- quando na realidade ele é que me devia ter pago por este espetáculo com que tanto parecia deleitar-se. Se v. cá estivesse teríamos filosofado, e resolvido talvez grandes problemas -- porque a inquietação desta vida e a fresca sobra destes caminhos convida à especulação metafísica. Pelo contrário, aí, v. depois de restabelecido, aposto que tem cassinado! Quando volta? Esquecia dizer que o interview sobre o pobre Cánova foi uma descarada fabricação. Eu já estava em Plombières, só soube das banalidades que tinha dito quando v. me mandou o retalho do jornal. Quel toupet o destes reporters! -- mas não valia a pena protestar, nem mesmo brincando. De Paris Plage, graças a Deus, tenho boas notícias. O sítio não é muito favorecido nem pela natureza, nem pela sociedade: mas há areia e mar, os pequenos estão contentes, e portanto o sítio é excelente. Eu espero, se Deus quiser, estar por lá até ao fim d’agosto. Desejaria saber quando v. vem a Paris para comunicarmos. E do Montenegro?...
Escra para Paris. Os meus respeitos à Srª D. Carolina, e afetuoso abraço do Cr.º.

Queirós. 

*Domício da Gama

Um comentário:

  1. Realmente Eça de Queiroz escrevia muito bem. O uso de expressões francesas neste texto é abundante, como se servissem de adorno para quebrar a monotonia.
    Com outras palavras, ele sugeriu ao amigo paulista a atenção para um provérbio milenar: "A natureza não dá saltos." Tudo na natureza ocorre de forma gradual, às vezes muito lenta, como se fora para avisar antecipadamente o homem de algum processo oculto que se está manifestando no mundo fenomênico. Da mesma maneira, se o homem leva a efeito algum empreendimento, uma mudança nos seus hábitos, uma reforma de caráter, tudo tem de ser feito lenta e gradativamente, afinal nós somos eternos, temos uma infinidade de tempo pela frente (assim acredito). Outro provérbio combina com o que citamos: "Apresse-se devagar." Este ressalta que não devemos ser inertes, pois a vida é dinâmica, é movimento; porém, nada de pressa, observemos o equilíbrio, a harmonia entre o trabalho e o descanso (A pressa é inimiga da perfeição).

    Flávio Henrique

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