sexta-feira, 6 de janeiro de 2012


O PAVOR DE NÃO SER RICO…

Pedro Paulo Paulino

Enquanto a cidade troava com a chegada do novo ano, Nonato Batatinha, depois de outro dia de luta, dormia o sono sossegado a que tem direito uma alma simples e uma consciência tranquila. Mesmo dormindo, ele não sonhava com a reviravolta que o destino dava em sua vida naquela noite em que um ano enterrava o outro. Mal acordou, encontra a porta da humilde moradia apinhada de gente. Os parabéns efusivos vinham de conhecidos e anônimos. O telefone, seu único bem de valor, toca insistente: ligações do Estado do Pará, de São Paulo, do Rio de Janeiro, de Brasília… Como não era o dia do seu aniversário, Nonato Batatinha ficou atordoado, embora entendesse que fossem os vivas de Ano-Bom partilhados pelos conterrâneos que não tinham dormido. Mas logo entre ele! um obscuro vendedor de batata frita (justifica-se a alcunha) daquela pequena e remota cidade? Algo estava errado. E a vida dele já não era a mesma.
O boato de que Nonato Batatinha era o ganhador do prêmio lotérico milionário sorteado naquela noite tomou conta da cidade como fogo no palheiro. Não é sabido de quem partiu a história e isto era o que menos interessava à turba agitada que queria sentir de perto a aura irradiante daquele novo Rubião, para citar aqui o sortudo de Quincas Borba. No calor das congratulações e felicitações de toda sorte, Nonato Batatinha mal disfarçava o sufoco, ainda mais porque não lhe davam chance de explicar, lamentando, que não tinha sido ele o felizardo. Como testemunho, conseguiu em alguma ocasião puxar do bolso e mostrar um papel amarfanhado: era o impresso da única aposta que tinha feito, de mísero valor. Não eram os números sorteados.
– Ele está com enrolada, foi ele mesmo que ganhou! Esse papel aí é só pra engabelar a gente.
Era essa a interpretação nos quatro cantos da cidade, cujo futuro doravante voltava-se mais para o Batatinha do que para o poder público. A fama de milionário pegou-lhe e, de repente, qualquer terreno baldio à venda, a casa da esquina, a propriedade abandonada, o apartamento na Capital, o sítio na Serra, o carro não quitado, o telefone da moda... manda lá que o Batatinha compra. As solicitações chorosas de auxílio, para a escola do filho, para terminar a construção da casa, para o tratamento do pai, para a expansão do cemitério, para a melhoria do hospital, para o embelezamento da igreja da cidade... manda lá que o Batatinha ajuda.
Pobre do Nonato Batatinha, começou a carregar nas costas o peso, a importância e a responsabilidade de homem opulento, que ele jurava por todos os santos não o ser. E quando se decidiu sair na rua retomando seu ofício, viu-se mais frito que as próprias batatas do seu comércio.
– Olha aí, tá bem querendo dizer que não ganhou o prêmio. Esse aí, hum, vai anoitecer e não vai amanhecer aqui, parece que tou vendo, vai se escafeder e nunca mais se lembra de nós.
Manietado pela sorte, azucrinado por todos, proibido pela opinião pública de vender suas batatas, ele transferiu para um vereador da cidade o crédito de verdadeiro ganhador do prêmio. Mas sua proposição não logrou meia hora de vida, porque o próprio vereador foi ter com ele na tentativa de obter um empréstimo vultoso, prometendo em troca ligações vantajosas com a esfera pública, até mesmo em Brasília; e além disso erguer na praça uma estátua do Batatinha, que seria inaugurada com grande pompa.
Já o prefeito da cidade, com primeiras ou segundas intenções, dispôs homens de sua guarda para resguardarem a integridade física do recém-milionário, bem como a segurança da sua casa, aonde não tinha chegado o mínimo alento daquela súbita riqueza. Era uma casinhola enfezada com trastes mais miúdos ainda.
Cercado por todo mundo, a toda hora, ele já fazia promessa a São Francisco de Canindé rogando que aparecesse o cristão que houvesse declaradamente abocanhado aquele maldito prêmio. Enquanto o santo devia andar avaliando o pedido, Nonato Batatinha passou a receber uma legião de parentes antes nunca vistos por ele; apertos de mãos estranhas; cumprimentos calorosos. Pior ainda, surgiram-lhe dívidas não contraídas, cobranças fantasiosas e mais uma enfiada de tormentos para a sua vida cuja paz tinha-se ido toda com o ano velho. A própria esposa do Batatinha, já com a pulga na orelha, começou irritantemente a cobrar-lhe a verdade:
– Vamo ver, Nonato, se tu ganhou esse dinheiro, home, me conte logo. Eu quero saber da verdade tintim por tintim, custe o que custar.
Era o cúmulo. Felizmente chegou o dia em que a cidade ficou conhecendo, distante dali, o legítimo milionário. Mas enquanto a dúvida prevaleceu sobre a verdade, a entrada da singela morada, por onde todo santo dia passava aquele operário sem brilho, em vez do portão da glória, transformou-se num instante no portão das trevas para o espírito leve do inocente Nonato Batatinha, que por algum tempo sofreu, sem a ter, as tempestades da riqueza. 

2 comentários:

  1. Este conto do Pedro Paulo é genial, e recomendo-lhe sinceramente que o apresente em um concurso nacional desse gênero literário, que com certeza será um ótimo concorrente.
    O conto é curto mas denso e, paradoxalmente, longo porque nos põe num suspense em cada frase, cada linha, na ansiedade de saber o desfecho da história: ele ganhou ou não o prêmio?!
    A música de nome Geni e o Zepelin, de Chico Buarque de Holanda, conta uma história semelhante e é uma crítica à hipocrisia, à falsidade, à cobiça e à instabilidade de caráter da maioria dos seres humanos. A mesma mão que aplaude é a que apedreja, de acordo com a ocasião e com as motivações egoístas da massa humana. Parafraseando uns versos de uma música da banda 14 Bis: poucos vão além do trem dos animais, do bem dos seres normais.

    Flávio Henrique

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  2. Fávio, esse miniconto é baseado na notícia que li no jornal Diário do Nordeste, edição do dia 3/1/12, com o título “Vendedor nega boato da Mega”, dando conta de que um habitante da cidade de Russas seria um dos ganhadores do superprêmio da Mega-sena da virada. O nome do personagem real é Raimunto Brito, conhecido na cidade como Raimundo Batatinha, que até hoje garante não ter ganho prêmio algum. Peguei o fato e fiz só um desdobramento dele.

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