sexta-feira, 12 de agosto de 2011

crônica


BRINQUEDO NORDESTINO

Gerardo de Melo

Montar num cavalinho de tala de carnaúba, e passar correndo junto à fogueira, queimando as palhas da ponta da cauda do 'cavalo' nas labaredas era uma brincadeira arriscada, mas muito divertida.” (Arievaldo Lima)



Agora que a idade obriga fugir todo dia pela manhã, forçosamente, do sedentarismo, contemplo na margem do asfalto em que caminho quase todos os dias uma carnaubeira, onde vacila, para desprender-se definitivamente, um de seus galhos, que lembra de imediato um cavalo de brinquedo, recordação de distante infância. O poeta citado em epígrafe escreveu, que, contrariando a tradição de plantar no quintal árvores bem diversas, resolveu cultivar perto de sua janela uma carnaubeira. Isto para contrastar com o ambiente urbano onde reside, e sempre preservar a lembrança de seu amado sertão. Para mim essa árvore rendeu mesmo foram cavalos, em que, montado na fantasia, atravessei tantos serões, achando estar na perseguição de índios ou de bandoleiros de uma cultura localizado bem mais ao norte. Conforme R. Magalhães Júnior, a estreia de José de Alencar nas letras deu-se com o ensaio A Carnaúba: “A carnaúba pertence à bela e majestosa família das palmeiras; é linda de ver-se, quando reverdece com as primeiras águas do inverno.” E algo inusitado: “Pouco antes, tinha falado sobre as qualidades alimentícias da carnaúba, de cujo miolo, ralado, fazia-se uma espécie de farinha. Os pobres, além de comerem a polpa dos frutos, semelhante ao da tâmara, ainda torravam o caroço, oleoso, para dele fazer uma bebida, aromática e saborosa, semelhante ao café.” Eram tempos difíceis. Todo menino nordestino, até certa época, cavalgou o cavalinho de carnaúba. Primeiro cortava-se os espinhos do galho, por motivos óbvios. Depois, com certo requinte, eram feitos cortes num das extremidades do artefato, de forma a conformar as orelhas desse rocinante vegetal. Após o que o mesmo era apetrechado com uma espécie de rédea, cujo uso somente a imaginação de uma criança conduzia. Na outra ponta deixava-se a palha a fazer as vezes de cauda. Esse brinquedo, fez parte do mesmo repertório do rebanho feito de ossos. Assim como os bichos feitos de barro que podem ser vistos em Vidas Secas de Graciliano Ramos, autor das mais originais narrativas de infância. Criatividade tornada anacrônica pelo totem cibernético.  Essa árvore também forneceu, durante muitos anos, a matéria-prima para a feitura de gaiolas, hoje, as leis de preservação ambiental também decretaram fim nesse costume. São as mesma carnaúbas vistas por Simone de Beauvoir quando esteve nestes sertões, e as mesmas que se contemplam da janela quando se ruma para o litoral, como a dizer adeus, enquanto chamam de volta, acenando seus leques contra a luz diamantina do sertão cearense.

3 comentários:

  1. Caro Gerardo de Melo, me emocionei deveras com o seu texto porque resgatou dois brinquedos de minha infância, o cavalo de tala de carnaúba e o gadinho de osso. Cheguei a possuir uma "boiada" de mais de 50 reses. O osso do chambari é o touro. As unhas da rês são os cachorros, os demais ossos do mocotó formam as vacas, novilhos e bezerros. Brinquei também com ossinhos de ovelhas, que constituíam o rebanho "ovino" da "fazenda" de brinquedo. Fui mais longe... Fiz uma grade de madeira para fazer tilolos pequeninos, de dez centímetros de comprimento e os queimava numa 'caieira' para construir a casa de morada. Devo dizer que não acertei fazer as telhas e tive que cobrir a casa com palhas de carnaúba. O curral era todo feito de cipó de marmeleiro, em cerquinhas de fachina. Passava horas e horas, dias e dias nessa brincadeira. Horas encantadas, sorvidas com indiscritível prazer, que se arrastavam lentas no descompromisso com o futuro, que chegou de assalto e me arrebatou daquele meio me jogando no turbilhão da vida.
    Nessa era da internet, dos games, dos pen-drives, dvd's, play-station etc. eu não consigo entender como as crianças se divertem. Acabou-se toda a criatividade, aquele lado lúdico que minha geração foi seguramente a última a presenciar.

    Arievaldo Viana

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  2. Que beleza... essa de brincar de fazer tijolos, é uma lembrança extremamente lírica, de fato, as telhas nem se imaginava como fazer... mas era brincadeira com barro, com manufatura... o comentário é uma verdadeira crônica. Graciliano narra, com certa violência, muito bem essa coisa da antiga infância dos nordestinos.

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  3. As lembranças dos brinquedos "naturais" da infância são agradáveis. Vivi a minha na década de 60, e lembro que fazíamos nossos carros de madeira e flandres tirados das latas de óleo, arte difícil e que exigia paciência. Os botões de futebol de mesa eram tirados dos paletós e raspados com pedaços de lâmpadas fluorescentes, com muito cuidado para não se cortar, pois diziam que aquele pó branco era venenoso. Existiam os botões feitos de baquelite fundida, que era vazada em uma tampa de refrigerante cujos dentes eram batidos com ferro. Depois o botão passava por um processo de raspagem para ter uma forma perfeita, polido até brilhar com cores variadas, visto que eram derretidos plásticos de cores diferentes. O triângulo era feito de arame grosso. As arraias eram algo prazeroso de se fazer, que nos dava orgulho, especialmente fazer a sua estrutura com talos de folhas de palmeira amarrados com linha para receber o papel de seda fixado com cola. Havia até os botões e anéis feitos de casca de coco seco, esculpidos a muito custo e paciência. Os gibis,líamos todos que nos chegavam às mãos, trocados com os amigos.
    Tudo isso nos fez desenvolver a coordenação motora, a concentração, o raciocínio e a força de vontade, de modo muito natural e sem necessidade dos métodos artificiais ensinados nas creches e escolas de hoje.
    Não sabia que o caule da carnaúba fornecia uma farinha comestível. Essa árvore é divina, tudo seu tem uma utilidade. Trata-se de um tesouro cujo valor não é reconhecido por muitos. A sua beleza, o vigor, a resistência ao clima adverso, fazem dela uma mãe para o sertanejo. Lembro-me que li num jornal a história de um empreendedor americano que viajou em um pequeno avião dos EUA para o Ceará, para instalar a primeira indústria de beneficiamento da cera de carnaúba, que hoje é utilizada até nos componentes eletrônicos. As suas aplicações na indústria são múltiplas, tanto é que a cera vem sendo há muito exportada daqui para os EUA. E nós somos incapazes de desenvolver pesquisas com esse produto, tal a incompetência do governo brasileiro em incentivar o desenvolvimento da ciência no País...

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