sexta-feira, 24 de junho de 2011


LACONISMO NA MÚSICA POPULAR
BRASILEIRA: UM EXEMPLO

Cantor Gilberto Alves
Alguém já disse que “escrever é a arte de cortar palavras”. Se em prosa impera essa lei, na poesia ela se torna igualmente forte e atraente. Não é à toa que o soneto, conhecido há séculos, ainda é a forma de poetar mais elegante e de difícil manejo. Em catorze versos, o poeta deve expressar por inteiro seu pensamento, obedecendo a regras rigorosas se realmente é um bom artífice da arte de Petrarca e Camões.
As letras de música, quando inspiradas e feitas com maestria, estão nessa mesma linha de qualidade em que, via de regra, o laconismo de palavras encanta, junto com uma sequência melódica adequada. Evidentemente, há letras de músicas belíssimas, mesmo extensas, como é o caso de “Luar do Sertão”, do maranhense Catulo da Paixão Cearense, regravada pelas melhores vozes da MPB.
Entre as músicas cuja letra sucinta é de um poder narrativo exemplar, sem dúvida está “Casa de Caboclo”, de Heckel Tavares e Luiz Peixoto, grande sucesso na voz de Gilberto Alves em seu LP de 1962, intitulado “Gilberto Alves de Sempre”.

Os versos iniciais descrevem detalhadamente um cenário, em linguagem coloquial de grande expressividade:

“Vancê tá vendo
Essa casinha simplisinha
Toda branca de sapê
Diz que ela véve do abandono
Não tem dono
E se tem, ninguém não vê

Uma roseira
Cobre a banda da varanda
E num pé de cambucá
Quando o dia se alevanta
Virgem Santa, fica assim de sabiá


Na estrofe seguinte, o autor passa a falar de um certo habitante da casa e sua reputada fama de cantador:

Deixa falar
Toda essa gente maldizente
Bem que tem um morador
Sabe quem mora dentro dela? Zé Gazela
O maior dos cantador

Agora, a narrativa fala de um encontro casual, um flerte e uma envolvente cena de amor. Atente-se para os modos brejeiros do conquistador e os trejeitos da moça encabulada, de pleno lirismo: 

Quando Gazela
Viu Sinhá Rita, tão bonita
Pôs a mão no coração
Ela pegou., não disse nada, deu risada
Pondo os olhinho no chão

A história evolui para o casamento entre Zé Gazela e Sinhá Rita e para um desfecho dramático, em que um flagrante delito de adultério é a nota máxima da canção:

E se casaram, mas um dia, que agonia
Quando em casa ele voltou
Zé Gazela viu Sinhá Rita muito aflita
Tava lá Mané Sinhô


Sem mais delongas, o autor encerra o poema-canção narrando de modo fantasticamente objetivo um crime passional, deixando ainda uma mensagem de cunho significativo:

Tem duas cruz
Entrelaçada bem na estrada
Escreveram por detrás:
Nma casa de caboclo
Um é pouco, dois é bom
Três é demais”

Obs.: A letra de “Casa de Caboclo”, a meu ver, não é uma apologia ao crime passional, ainda tão comum na sociedade dita moderna. O que se proclama aqui neste pequeno comentário, é unicamente a capacidade de concisão de uma história em poucas linhas, expressivas e impactantes, como bem sabem fazer os grandes letristras e poetas. Não merece nem comparação o besteirol que tomou conta brutalmente da Música Popular Brasileira, principalmente no começo deste século.
A música "Casa de Caboclo" teve várias interpretações, inclusive por Luiz Gonzaga, mas tudo leva a crer que a gravação de Gilberto Alves é a de molde mais apropriado, levando em conta a voz encorpada do cantor, na tonalidade certa para esse estilo musical, bem como a acertiva nos arranjos.
Encontrei este link em que se podem ouvir, além desta faixa, várias outras gravações de Gilberto Alves. “Casa de Caboclo” é a faixa 22:

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