terça-feira, 24 de maio de 2011


O SANTO, SUA ESTÁTUA E UM CORDEL

Caricatura de Jota Batista por Arievaldo
Na transição do século-milênio, o assunto mais em voga em Canindé, Ceará, era a construção da estátua de São Francisco. Enquanto uns apostavam na execução da grande obra, outros apostavam contra. Na cidade de Caridade, vizinha a Canindé, uma obra do mesmo porte tinha ido por água abaixo: a construção da estátua de Santo Antonio, padroeiro daquela cidade. Lá, enquanto a cabeça do santo havia sido lapidada (pelo escultor Franzé de Aurora) e abandonada (pelo poder público), em Canindé estava em andamento o projeto de construção do corpo da estátua de São Francisco. O irreverente poeta canindeense Jota Batista teve a engenhosa ideia de juntar a cabeça de um santo e o corpo do outro e… criar um novo santo: São Frantônio. A polêmica rendeu um cordel histórico e até uma rápida exibição de Jota Batista no Jornal Nacional, da Rede Globo. Nesse folheto, Jota pinta um retrato da época, citando inclusive nomes que hoje estão fora do cenário político da região. A estátua de São Francisco foi finalmente realizada pelas mãos do escultor Deoclécio Soares Diniz (Bibi). Reproduzimos na íntegra o cordel de Jota Batista:
Na vizinha Caridade
Planejaram um monumento
Que ia ser o sustento
Do turismo na cidade
E havendo necessidade
De realizar o sonho
Nestes verso, ora exponho
Depois de tanto bulir
Resolveram construir
A Estátua de Santo Antonio

Eu digo e não me envergonho
Que o povo desta comarca
Quis afastar o demonio
Pra não ver cair a barca
Sem espera e sem demora
Chamaram Franzé de Aurora
Para dar início à obra
E disseram pro Franzé:
Deixe Santo Antonio em pé
Que dinheiro tem de sobra

E o Franzé, que é um cobra
Na arte da criação
Sabe bem usar as mãos
Tem manejo e tem manobra
Na labuta se desdobra
E aceitando o convite
Deu até o seu palpite
Eu vou do começo ao fim
Pois confio em Raulzim (*)
Que é prefeito de elite

Que o leitor me acredite
No que agora vou falar
Espero que não se irrite
Também não quero aumentar
A água sumiu na baixa
Sumiu dinheiro no caixa
Sumiu de tudo, seu moço
Depois da pouca colheita
A estátua só foi feita
Do pé até o pescoço

Peço fino e peço grosso
E perdão a essa gente
Mas eu tenho em minha mente
Que esse grande alvoroço
Não dá pra comer insosso
Aquele bom povoado
Já anda até conformado
A verdade aqui eu ponho
Há quem chame Santo Antonio
“Meu santo descabeçado”

E seguindo esse traçado
Também movido por fé
Houve outro plano bolado
Em nosso bom Canindé
A ideia é do prefeito
Que, assim que foi eleito
Se mostrou  bastante arisco
Mal ele saiu do ovo
Já foi prometendo ao povo
A Estátua de São Francisco

Eu já ouvi esse disco
Mas aqui eu não lhe julgo
Acho que o Dr. Zé Hugo (**)
Já deu o traço do risco
E assim como um corisco
Que ligeiro a obra cresça
Nossa fé que prevaleça
Acredito, não duvido
Pois Bibi já tem erguido
O formato da cabeça

Só não quero que ele esqueça
De fazer o tronco e membro
Se ele esquecer, eu lembro
Nem que ele se aborreça
Se a estátua ficar de pé
Vem gente de Canindé
Do campo e da Capital
Se o restante não for feito
Eu tenho dentro do peito
Uma ideia genial

Vai ser até mais legal
Veja se eu tenho razão
Eu falo de coração
Não quero fazer o mal
Minha ideia divinal
E minha mente precisa
Me desperta e me avisa
A mão que bate e afaga
Seu Zé Hugo e Sérgio Braga (***)
Botem a estátua na divisa

É bom, que economiza
Dinheiro, tempo e trabalho
Não sua nem a camisa
Quem anda pelo atalho
Eu falo sem ironia
Vai ser grande a romaria
Nem ruim e nem pior
Sou capaz de apostar
Que o Canal Dez vai mostrar
Dois santos num corpo só

Tenho outra ideia melhor
(A pagode não me tome)
Pra coisa ficar menor
A gente junta os dois nomes
Sacoleja-se a cumbuca
Balança o corpo e a cuca
Estou com medo medonho
A seca está nos matando
E o povo está apelando
Valei-nos, oh! São Frantônio

Veja só o que eu suponho
Aos prefeitos vou falar
Eu ando um pouco bisonho
Mas gosto de opinar
Que o tronco e a cabeça
Num só corpo permaneça
Pra que aumente a devoção
E que ninguém se intrometa
Ponha tudo nu’a carreta
E levem pro Camarão (*)

Ai vem a confusão
Porque José Hugo quer
A frente pro Canindé
E ele até tem razão
Sérgio Braga diz que não
E faz até uma aposta
Que seu povo não desgosta
Diz ele que tem poder
E afirma: “Não vou querer
O lado que fica as costas”

O lado que fica as costas
O Zé Hugo é que não quer
O povo de Canindé
Já escolheu a resposta
Qual é o doido que gosta
Do que houve em Hiroshima
Poeta, não mude a rima
Temos outra solução
Peguem o monumento, então
E botem de pé pra cima

De pé pra cima não dá
Pois a preferência é minha
Mas disputo na porrinha
O lado que vai ficar
Se o Sérgio Braga topar
Eu vou falar com o Bibi
Se a cabeça vai daqui
É daqui que eu toco a tuba
Nem a frente pra Aratuba
Nem para o Paramoti

E para diminuir
O sofrimento do povo
Eu já tenho um plano novo
Esse é bom se discutir
Usando a imaginação
A gente agrada ao povão
E termina com a história
Acredito que o Bibi
Não se nega a construir
Uma estátua giratória

Você não sabe servir
O povo que vem de fora
O romeiro não demora
Chega e logo quer sair
Torno aqui a repetir
Pra que você não esqueça
Que a briga desapareça
Eu cochilo, mas não ronco
Você fica com seu tronco
E eu, com minha cabeça

Essa é minha opinião
Só escuta ela quem quer
Pois o nosso Canindé
Tem artista brincalhão
Finalizo aqui então
Sem fazer nenhnum refugo
Dizendo ao Sérgio e ao Zé Hugo
Bibi e Franzé de Aurora
Que tudo que eu disse agora
Eu passo o pano e enxugo

Minha mente, eu não alugo
Peço aqui perdão a Deus
Aos dois santos não expurgo
São apenas versos meus
Não levem a sério o artista
‘Inda mais, Jota Batista
Por causa deste rabisco
De toda fé que disponho
Dou vivas a Santo Antonio
E palmas pra São Francisco
Estátua de São Francisco, em Canindé, Ceará


(*) Raul Linhares, ex-prefeito de Caridade.
(**) José Hugo Coelho, ex-prefeito de Canindé.
(***) Sérgio Braga, ex-prefeito de Caridade.

2 comentários:

  1. Desta mesma série, J. Batista publicou um outro folheto intitulado "A VERDADEIRA HISTÓRIA DA VIAGEM DE SÃO FRANCISCO AO PIAUÍ" que satiriza a pretensão do ex-governador "Mão Santa" de levar a imagem milagrosa da Basílica de Canindé para uma peregrinação em seu Estado. Apesar de não ser muito perfeccionista em matéria de métrica e rima, J. Batista surpreende pelo seu bom humor e leveza nas suas irreverentes construções poéticas. Fizemos vários trabalhos em parceria, dentre os quais eu destaco: "Proezas de um babão", "Aprendeu a andar de moto mas não sabia parar", "O homem que lutou com um cabaço até ficar isdrope mas não fez o babizoco" e diversas paródias musicais. Parabéns ao poeta Pedro Paulo pela excelente postagem.

    ARIEVALDO VIANA

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  2. Da enorme verve de J. Batista, um de meus cordeis preferidos, junto com Julião, O Caçador de Lobisomens, é Peleja de Dois Mosquitos com o Negão do Olho só. O melhor da vertente fescenina do cordel, área pouco explorada nessa arte, tradicionalista que é, lá se apresenta, em passos como:

    Resolveram dois mosquitos
    Visitar o Canindé
    O nome dum era Chico
    Outro se chamava Zé
    Por não saberem de nada
    Foram os dois pedir morada
    Na porta dum cabaré

    ........................

    Encontraram logo um bico
    Nas coxas de uma mulher
    O Chico metido a rico
    Falou assim: Anda Zé,
    Esta casa é de primeira
    Não tem uma só goteira
    Vour armar o meu mundé

    E fizeram finca pé
    Entraram virilha adentro
    Subiram pelo sopé
    Se instalaram bem no centro
    O Zé disse para o Chico
    Em casa de gente rico
    Faz tempos que eu não entro

    O poeta Pedro Paulo bem poderia brindar os seus leitores com a íntegra desse poema sensacional.

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