sábado, 28 de maio de 2011

NO DIA DO SERESTEIRO...


HABEAS PINHO

Conta-se que na Paraíba, certa vez foi preso um grupo de rapazes que fazia uma serenata. Embora liberados no dia seguinte, o violão dos boêmios ficou detido na delegacia. Tomando conhecimento do acontecido, o poeta Ronaldo Cunha Lima enviou uma petição feita em versos ao juiz da Comarca solicitando a liberação do instrumento musical. Transcrevemos aqui os versos de Cunha Lima e em seguida a resposta do juiz Roberto Pessoa. (Observa-se que a métrica dos versos a seguir nem sempre está na medida certa. O epigrama, todavia, tem seu valor antológico.)

Senhor Juiz  
Roberto Pessoa de Sousa:

O instrumento do "crime" que se arrola
Nesse processo de contravenção
Não é faca, revólver ou pistola,
Simplesmente, doutor, é um violão.

Um violão, doutor, que na verdade
Não feriu nem matou um cidadão.
Feriu, sim, mas a sensibilidade
De quem o ouviu vibrar na solidão.

O violão é sempre uma ternura,
Instrumento de amor e de saudade,
O crime a ele nunca se mistura,
Entre ambos inexiste afinidade.


O violão é próprio dos cantores,
Dos menestréis de alma enternecida,
Que cantam mágoas que povoam a vida
E as sufocam em suas próprias dores.

O violão é música e é canção,
É sentimento, é vida, é alegria,
É pureza e é néctar que extasia,
É adorno espiritual do coração.

Seu viver, como o nosso, é transitório,
Mas seu destino, não, se perpetua.
Ele nasceu para cantar na rua
E não pra ser arquivo de Cartório.

Ele, doutor, que suave lenitivo
Para a alma da noite em solidão,
Não se adapta jamais em um arquivo
Sem gemer sua prima e seu bordão.

Mande entregá-lo, pelo amor da noite
Que se sente vazia em suas horas,
Para que volte a sentir o terno açoite
De suas cordas finas e sonoras.

Liberte o violão, senhor juiz,
Em nome da Justiça e do Direito.
É crime, porventura, o infeliz
Cantar as mágoas que lhe enchem o peito?

Será crime, afinal, será pecado,
Será delito de tão vis horrores,
Perambular na rua um desgraçado
Derramando nas praças suas dores?

Mande, pois, libertá-lo da agonia
(a consciência assim nos insinua).
Não sufoque o cantar que vem da rua,
Que vem da noite pra saudar o dia.

É o apelo que aqui lhe dirigimos,
Na certeza do seu acolhimento.
Juntada desta aos autos nós pedimos
E pedimos, enfim, deferimento.

O juiz Roberto Pessoa de Sousa respondeu à petição com este soneto:

Recebo a petição escrita em verso
E, despachando-a sem autuação,
Verbero o ato vil, rude e perverso,
Que prende no Cartório um violão.

Emudecer a prima e o bordão,
Nos confins de um arquivo, em sombra imerso,
É desumana e vil destruição
De tudo que há de belo no universo.

Que seja noite, ainda que a desoras,
E volte à rua em vida transviada,
Num esbanjar de lágrimas sonoras.

Se grato for, acaso ao que lhe fiz,
Noite de lua, plena madrugada,
Venha tocar à porta do Juiz.

Um comentário:

  1. Não é todo dia, principalmente nos dias que correm, que se vê um meritíssimo descer do alto de sua toga e, se irmanando a todos que cultivam o invento de Petrarca, proferir os versos espirituosos que hoje foram postados. Embora, historicamente, até o século passado, pelo menos, todos os nossos grandes homens de letras tenham cursado a faculdade de Direito, na maioria dos casos, não frequentaram o fórum como causídicos, nem exerceram a magistratura (legítima). Valeu, poeta dos três pês.

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