MUNDO LITERÁRIO



PUREZA E LICENCIOSIDADE EM CRUZ FILHO
José Alcides Pinto

Cruz Filho, poeta e funcionário público, que se constituiu, em vida, um enigma para seus amigos e para si mesmo, não foi um puritano (graças a Deus), como muitos possam pensar. Foi um homem íntegro na expressão da palavra, e um poeta que se dava às emoções sem reprimi-las. Testemunho disso são seus poemas escolhidos, pois os que tenho às mãos representam uma coletânea de seus vários livros, mas creio que esta seja bastante para justificar o poeta puro e fescenino que tentaremos mostrar ao leitor.

            Comemorando o centenário de nascimento do poeta, a Coordenação dos Programas Culturais da Casa José de Alencar, resolveu publicar os Poemas Escolhidos, de Cruz Filho, sendo encarregado de fazer a seleção e a introdução o ensaísta e poeta Sânzio de Azevedo.
            É necessário que se leia a introdução da obra (Cruz Filho e Sua Poesia), de Sânzio de Azevedo, para que se faça um juízo certo da postura do poeta de Poemas dos Belos Dias no contexto da poesia não somente de sua época, mas também da contemporaneidade, para que não se distorça o caminho certo de sua visão poética.
            Mas é preciso que uma coisa fique bem clara: Cruz Filho não era aquele homem tão enclausurado em si mesmo  e afastado da vida exterior, a ponto de, mergulhado em sua arte marmórea, esquecer a mulher e o envolvimento amoroso. Era um esteta da língua, e um sátiro disfarçado. E tão bem juntava as duas coisas que só o leitor dotado de faro literário poderá sentir essa emanação de Eros nas entrelinhas de seus poemas. Mas o envolvimento amoroso era uma constante em toda sua obra e sem dúvida alguma em sua vida, que sempre se manteve em religioso sigilo. Porém autor algum escapa dos dardos de Cupido. E é o que se constata, agora, ao compulsar, detalhadamente, a obra desse bardo de prosador de primeira linha.
            No poema que abre a seleção, “Noturno”, está o poeta a contemplar a noite estrelada, e lembra sua armada que está ausente:

                                   Guarda esta varanda uma saudade sua
                                   Seu perfume ainda sinto aqui vagar...
           
            Mais adiante, no mesmo poema, desponta o erotismo do poeta nestes versos:

                                   Muita vez , volvido para o espaço cheio
                                   Da neblina argêntea das constelações,
                                   Novamente sinto estremecer-lhe o seio,
                                   À pressão do braço, com que, em vago anseio
                                   Conto, um por uma as suas pulsações.

            A pureza do poeta de alma romântica está em muitos dos seus versos. O soneto “Paisagem Morta”, por exemplo, falando da casa da fazenda onde “ o brando encanto me colheu outrora/Do belo sonho que sonhei contigo”, termina assim:

De purpúreo esplendor o céu se tinge:
E a casa triste, ao vesperal lampejo,
Muda e deserta, o coração constringe!

Mas, à varanda que lhe estreita o flanco,
Um vulto de mulher ao longe vejo,
Inda a acenar-me com o seu lenço branco...
           
            De suas “Redondilhas” ofereço ao leitor o lado fescenino desse grande poeta:

                                   A pêra, a maçã, o figo,
                                   Qualquer fruta fica feia
                                   Ante esses limões de umbigo                     
Que trazes à flor do seio.

Dos teus joelhos para cima
Conhecer-e não mereço,
Mas penso que o mais é a rima
Desse menos que conheço.

Nasceu o amor que ela instiga,
Mas nunca me corresponde,
De certo não-sei-que-diga
Que ela tem lá não-sei-onde.

Hoje, já frouxos os laços
Do nosso amor conjugal,
Cometo, ao ter-te em meus braços,
Certo adultério mental.

Conservou-se Cruz Filho no celibato até o fim de seus dias, mas quantos amores vividos não passaram pelo coração do poeta? O número de mulheres que um homem possui não se conta pelos noivados e casamentos oficiais, mas sim pelas dúvidas acumuladas pelos amigos e, mais do que estas, pela inveja dos inimigos...
Sânzio de Azevedo que, além de historiador da literatura cearense, teve a ventura de freqüentar a casa do poetas, nos últimos anos de sua vida, na introdução dos Poemas Escolhidos fala da vida e da obra de Cruz Filho, fazendo este retrato cuja autenticidade comprovamos: “à mesa, o poeta: livros por todos os lados, espalhados pelo escritor ou por seu irmão Gregoriano, também intelectual, mas que quase nada deixou; à direita do poeta, a estátua de um robusto e pensativo gorila, a lembrar de certa forma as convicções darwinianas do escritor; e, ornamentando as paredes, várias fotografias, entre as quais sobressaía aquela em que figuram, juntos, Alberto de Oliveira, Raimundo Correia e Olavo Bilac”.
Concordamos plenamente como prefaciador a obra, quando ele diz que a cultura do Ceará ficará devendo mais um serviço inestimável ao professor Antônio Martins Filho “que com sua larga visão de intelectual e homem de ação”, fez editar , na Coleção Alagadiço Novo, da Casa José de Alencar, alguns dos melhores poemas de Cruz Filho, grande poeta que as nova gerações precisam conhecer.

JOSÉ ALCIDES PINTO, poeta, escritor, jornalista, ex-professor do Curso de Comunicação  Social da UFC, é autor de dezenas de livros, entre os quais “Os verdes Abutres da Colina” e “Relicário Pornô”.  A ilustração é de Domenico Contatore. (Artigo digitalizado por Silvio R. Santos do caderno O Povo Cultura, jornal O Povo, Fortaleza, 27 de julho de 1986.)







OS BARCOS DE SÃO FRANCISCO DAS CHAGAS DE CANINDÉ

Gustavo Barroso
Contava-me na infância um veterano da guerra do Paraguai, ferido no ombro de Itororó, que, no hospital de sangue, identificava a origem dos seus companheiros de dor pelos santos que invocavam, gemendo. Quando ouvia dizer: - Ai, minha Nossa Senhora de Nazaré! Sabia tratar-se dum paraense. Se escutava: - Ai, meu Senhor do Bonfim! Era um baiano. Se outro bradava:- Salve-me a Senhora da Aparecida! Seria paulista ou mineiro do sul. E todos os cearenses, sem exceção, clamavam: - Valha-me, São Francisco das Chagas de Canindé!
Essa devoção nasceu no sertão do Ceará com a grande seca de 1792. Trouxera-a para Canindé um português vindo do Recife, o capitão Francisco Xavier de Medeiros. Favoreceu-a a pregação feita naqueles rincões pelos missionários franciscanos frei Manuel de Santa Maria e São Paulo, frei Bartolomeu e frei José de Santa Clara Monte Falco, que, de 1759 a 1800, andaram em desobriga pela então freguesia de S. José de Ribamar, que se estendia do litoral até o alto sertão, compreendendo em seus limites tanto Fortaleza como o povoado de Canindé, onde outrora se aldearam os índios desse nome. Quando acabou a Seca Grande, como foi chamada, o povo dessa localidade e suas redondezas decidiu levantar ali uma Igreja ao santo, que os consolara e salvara nas dramáticas aperturas da crise. Foi benfeitor principal das obras da construção o capitão Francisco Xavier de Medeiros.
Conta-se que o terreno escolhido para a ereção do templo se incluía na gleba da fazenda Renguengues, pertencente a três donos residentes em Pernambuco, os quais formalmente se negaram a cedê-lo por doação e mesmo por venda. Logo depois dessa negativa, adoeceu um deles, em breve falecendo. O mesmo aconteceu ao segundo daí a pouco tempo. E o terceiro, mal sentiu que também ia cair doente, prometeu ao santo, se escapasse, dar o terreno pedido. A edificação começou e prosseguiu com esmolas que vinham de toda a parte. Já estavam as torres bastante altas, quando dum dos andaimes escorregou e despencou-se um pedreiro. Ao cair, gritou por S. Francisco e logo se viu suspenso no espaço pela fralda da camisa a uma ponta de viga, o que deu tempo a ser socorrido, e toda gente do lugar presenciou.
No correr do tempo, os milagres e a fama de S. Francisco foram se espalhando pelos sertões do Ceará e de todo o Nordeste, as romarias aumentando ano a ano, o povoado tornando-se vila e cidade, as promessas multiplicando-se em proporções geométricas, os donativos crescendo, de modo que a primitiva Igreja se transformou em imponente basílica moderna e, com os óbolos dos fiéis, os frades franciscanos que regem aquele patrimônio sustentam admiráveis instituições de caridade, instrução e educação profissional da juventude sertaneja.
O cearense emigrado, aonde quer que vá, leva no coração a fé na proteção de seu grande santo, como aqueles humildes soldados feridos em defesa da honra do Império nos campos inóspitos do Paraguai. Nas selvas amazônicas, nas minas do Amapá, nos seringais do Acre, nos confins de Mato Grosso, nos cafezais do Paraná ou no asfalto da Babilônia paulista, ao sofrer qualquer golpe do destino, moral ou físico, volta-se para o miraculoso padroeiro da pequena cidade do sertão: - Valha-me S. Francisco das Chagas de Canindé. Faz-lhe a sua promessa e religiosamente a paga, seja como for. Poderá faltar a tudo, menos ao seu querido protetor celeste. Em todas as angústias e aflições, dirige-se seu pensamento para o santuário da sua terra natal: a Basílica do Pobrezinho de Assis.
Por isso, os ex-votos ricos e pobres, pintados ou esculpidos, de pau ou de pedra, de metal ou de cera, atopem os armazéns a eles destinados, anexos à Igreja. São em tamanha quantidade que seria impossível guardá-los para sempre. Por isso, todos os anos se escolhem os mais interessantes e significativos, derretendo-se os de cera para fazer velas e queimando-se os demais. Senão, no fim de dez anos, não haveria mais lugar nos depósitos por maiores que fossem.
Dentre esses ex-votos, os mais assombrosos, e esta palavra é mais do que apropriada, são uns barquinhos de 50 a 80 centímetros de comprimento, que vêm dos mais distantes igarapés da Amazônia, pelos afluentes do Rio-Mar, onde eles despejam suas águas, por ele abaixo e pelo oceano afora até as praias nordestinas, trazendo velas para serem acesas no altar do Santo ou dinheiro para missas e para suas obras de benemerência, silenciosos e fiéis mensageiros dos humildes cearenses perdidos na batalha da borracha, dentro das brenhas do Inferno Verde.
Nas suas horas de necessidade e de dor, esses cearenses fazem suas promessas a São Francisco das Chagas de Canindé e, como não dispõem de outro meio de comunicação com sua terra natal, sabendo que os ribeiros correm para os rios e os rios correm para o mar, como diz a velha canção portuguesa, constroem esses barcos, alguns até com certo gosto artístico, ornamentando-os com carinho, colocam neles ex-votos ou dinheiro, às vezes até 2 ou 3 mil cruzeiros, calafetam-nos completamente e os lançam às águas do igarapé ou do rio amazonense onde estão vivendo. Além do endereço: Para S. Francisco de Canindé, pintam em lugar visível outros letreiros neste estilo, por exemplo: Pede-se à pessoa que encontrar este barco na beira fazer o favor de pôr para o meio. Graças alcançadas deste Grande Santo, ou: Quem me encontrar parado me empurre para o meio.
Canoeiros ou pescadores que acham um desses pequenos barcos encalhado numa curva do rio ou numa coroa de areia, preso nas vegetações marginais ou enredado nos camalotes e balseiros, liberta-o e tange-o correnteza abaixo. Assim, eles navegam pelo igarapé, passam ao afluente, seguem pelo Amazonas, são lançados ao mar e as correntes oceânicas se encarregam de leva-los às praias de Tutóia, ou Amarração, do Camocim ou do Acaraú. Jangadeiros e caboclos que ali os encontram os entregam ao primeiro viandante que siga para o interior e, de mão em mão, levados por um comboieiro ou por um chofer de caminhão de boa vontade, os barcos vão ter às mãos dos frades de Canindé com sua carga intacta. A honestidade daquela pobre gente não lhe permite tocar no dinheiro do santo. E, se tocasse, decerto lhe aconteceria grande desgraça. São às dezenas os barcos dessa espécie que chegam anualmente a Canindé.
Desde longa data costumam as populações ribeirinhas do S. Francisco enviar pelas águas do rio à Lapa do S. Bom Jesus, como dizem, ao Santuário do Bom Jesus da Lapa, na Bahia, suas oferendas em dinheiro dentro de cabaças hermeticamente fechadas, com uma vela acesa em cima, que navegam de bubuia, correnteza abaixo, respeitadas por todos os pescadores e barqueiros. Mas somente praticam isso os crentes que habitam a montante da Lapa, baianos e mineiros, a viagem dessas cabaças é relativamente curta e somente fluvial, enquanto os barcos de S. Francisco das Chagas de Canindé perfazem distâncias enormes através de alguns dos maiores rios do continente, e do oceano, sendo depois conduzidos por terra a dezenas de léguas do litoral.
O fato do envio desses barcos desde os recessos da Amazônia até o sertão cearense, através de inúmeros percalços, é verdadeiramente assombroso, implica um ato extraordinário de fé primitiva, espontânea e ingênua, testemunha a existência , insuspeitada pela gente sofisticada das grandes capitais, dum outro Brasil, dum Brasil que não conhecemos, que está mesmo fora das apressadas e interesseiras cogitações dos que vivem para o futebol, o café society ou a politicagem, Brasil inteiramente à margem deste Brasil desvirtuado, cosmopolita, sem peculiaridade e sem tradição, que se tem formado no litoral e no qual vivemos. É finalmente um dos atos mais extraordinários da crença do povo nordestino nos seus santos. Acresce que os seringueiros, que não podem ou não sabem construir um desses pequenos barcos, enviam suas dádivas ao Padroeiro do Canindé sob a forma de bolas de borracha defumada, soltas também nas águas correntes, que o Amazonas despeja no Atlântico e este atira às praias, onde as pessoas do povo as apanham e mandam pelos mensageiros que encontram ao santuário sertanejo. Todos os anos os frades de Canindé, apuram algum dinheiro com a venda dessa borracha, trazida, como diria o clássico, sob los rios que vão.
Isto que aqui se narra é tão impressionante que até parece episódio da história de outras eras, dum Brasil, que não é mais deste tempo utilitário, que talvez já se esteja, por nosso mal, acabando, mas que é belo, por demais belo, assim cheio da inocente, da puríssima fé em Nosso Senhor Jesus Cristo e nos milagrosos santos da Sua Madre Igreja, sobretudo, naquele Poverello, tão suave e tão pobre, que sabia falar às aves e aos peixes, e recebia nas mãos e nos pés os mesmos estigmas rubros do seu Deus imolado pelos homens, como ele lanceado no flanco e coroado em sangue pela mesma coroa de Glória e de Martírio.


- Gustavo Barroso em À MARGEM DA HISTÓRIA DO CEARÁ, editado em 1962 pela UFC, tendo sua segunda edição, de onde foi copiado este capítulo, em 2004, sob os auspícios da FUNCET-PMF.

Gustavo Dodt Barroso, que nasceu em Fortaleza em 1888, foi advogado, político, contista, museólogo, folclorista, ensaísta, cronista, arqueólogo, memorialista e romancista. Membro da Academia Brasileira de Letras, foi o criador do Museu Histórico Nacional, em 1922, por ocasião das comemorações do Centenário da Independência, iniciativa do então presidente Epitácio Pessoa, tendo dirigido a instituição desde a fundação até a sua morte, em 1959.

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O soneto humorístico, muito cultivado na fase parnasiana da literatura nacional, teve, nesses versos de B. Lopes, a chave de ouro mais achincalhada de todos os tempos. Incomodou até Rui Barbosa,  que escreveu um texto demolidor, “A Crise Moral”, por ele lido no plenário do Senado da República, contendo coisas do tipo: “Adulação e servilidade, servilidade e adulação. O pobre poeta, no delírio do seu baixo lirismo, destilou o mais requintado extrato dessa época de apodrecimento.”  Apud. Alexei Bueno in Uma história da Poesia Brasileira, “Bernardino da Costa Lopes (1859-1916), nasceu em Boa Esperança, Rio de Janeiro. Mulato, de origens muito humildes, começou a trabalhar como caixeiro, enquanto estudava.  Através de concurso, tornou-se funcionário dos Correios, função que exerceu pelo resto da vida. Helenos, publicado em 1901, é considerado o ponto alto de sua obra, que contém sonetos antológicos, bem diversos do aqui postado.

MARECHAL HERMES


Lembra-me, ao vê-lo, a flor extraordinária,
Sobe um céu limpo, azul e iluminado...
-- Não há, como ele, outro imortal soldado,
De mais bela feição humanitária!

Puxa do raio – a lança ebúrnea e vária –
Em defesa da Pátria, lado a lado;
-- Faz-se de tudo um santo bem-amado...
Só busca a força, quando necessária!

O vinho d’Ele é saboroso e quente,
De encher a taça, e embriagar a gente,
Entre os festins gloriosos da bravura!...

Não há por esse mundo – agora o digo –
Quem mais piedade tenha do inimigo...
-- Bonito herói! Cheirosa criatura!